domingo, 23 de janeiro de 2011

Uma homenagem ao magnífico literato João Ubaldo

Esta homenagem, muito apropriada, para o momento atual em ,que ENEM, SISU, ENADE, dão tantos embaraços!
Mas, ela é de coração para o escritor que admiro muito.


O verbo "FOR"
João Ubaldo Ribeiro

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à
altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas.
Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser
reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com
o vigor necessário - evidentemente o condizente com a nossa condição
provecta -, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular,
é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas
julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas
coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).

O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da
Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e
sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e
a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou
matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão
ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente.
Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei
o comecinho.

Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos
nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto
(sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por
qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era
particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à
performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de
Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário,
dicionário), o mestre não perdoava.

- Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra - dizia ele ao
entanguido vestibulando.

- "Catilina, quanta paciência tens?" - retrucava o infeliz.

Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago,
olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em
direção à porta da sala.

- Ai, minha barriga! - exclamava ele. - Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir
tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma
de alimária. Senhor meu Pai!

Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou,
chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre
sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa
foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais
alto coturno em seu elenco.

O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma
coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e
inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor
José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras
aladas:

- Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do
Hino Nacional!

- As margens plácidas - respondi instantaneamente e o mestre quase deixa
cair a xícara.

- Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?

- Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as
margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem
teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos
na ordem direta...

- Chega! - berrou ele. - Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!

Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem
para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor
carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com
aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez,
chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e
abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato
ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois
se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o
plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a
pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no
texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto
do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o
um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.

- Esse "for" aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que
resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me
encarou sorridente.

- Verbo for.

- Verbo o quê?

- Verbo for.

- Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

- Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. - Nós fomos, vós
fondes, eles fõem.

Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando
e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na
equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas.
Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias
que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões
tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

RIBEIRO, J.U. O Conselheiro Come. Ed.Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 2000,
pág. 20.

Nenhum comentário:

Postar um comentário